Crônicas do "Da C.I.A"

Monday, September 17, 2007

O Senado deve cassar ACM? - Folha de São Paulo, 19/05/01

NÃO - Por um julgamento justo
MÁRCIO THOMAZ BASTOS

Afinal , de que é acusado o senador Antonio Carlos Magalhães?
Uma das versões (a do senador José Roberto Arruda) imputa-lhe tê-lo autorizado a proceder a uma consulta à diretora do Prodasen sobre a segurança do painel de votação. Está isolada no universo probatório, apoiada exclusivamente na palavra do senador Arruda.
A outra (a do próprio senador Antonio Carlos Magalhães) está fortificada por várias evidências diretas e indiretas (a lista não lhe foi entregue pessoalmente; dra. Regina sempre disse que o senador Antonio Carlos Magalhães jamais lhe pediu, direta ou indiretamente, a lista; esta lhe foi entregue em clima de grande surpresa, pelo senador Arruda). Segundo essa versão, Antonio Carlos Magalhães teria tomado conhecimento da lista pela primeira vez quando o senador Arruda a levou até ele.
Que fez então o senador ao receber aquele pedaço de papel, sem timbre, sem autenticidade e sem assinatura? Destruiu-o para preservar a sessão do dia (em que se cassara o senador Luiz Estevão) de qualquer suspeita ou impugnação. Entendeu, no exercício da presidência, de não lhe dar curso, evitando o estrépito e o escândalo que adviriam da divulgação, ainda sob a consideração da possibilidade muito forte de que a lista pudesse ser falsa.
Depois, a pedido do senador Arruda, telefonou para a dra. Regina, visando tranquilizá-la.
De notar-se que, naquele momento, não tinha conhecimento da logística e das manobras utilizadas para a obtenção do papel, que só vieram a público, muito tempo depois.
Guardou segredo sobre ela, não a divulgando nem lhe dando publicidade. Se a mencionou (o que se admite estritamente para argumentar), teria sido em reunião sigilosa com procuradores da República, à qual foi dada publicidade indevida por meio de gravação clandestina e astuciosa (objeto de várias e desencontradas versões) feita por um dos procuradores, que se travestiu em repórter de uma revista semanal.
A outra questão consequente à primeira e a ela indissoluvelmente ligada, em relação necessária, diz respeito à manutenção do segredo sobre os fatos, até que tenha sobrevindo o último laudo da Unicamp.
Uma vez tomada a primeira e solitária decisão com que ele entendia estar protegendo o Senado e aquela votação histórica, o que houve foi uma sucessão de atitudes coerentes com aquele propósito, que envolviam, de forma inelutável, a negativa de existência da lista. Se a decisão foi certa ou errada é difícil, hoje, dizer. Mas naquele momento e naquelas circunstâncias era razoável a opção feita. Não faria sentido lógico nem político que se tivesse tomado uma decisão de não dar divulgação ao acontecido e, na sequência, se passasse a proclamar que a lista existia.
Esse foi todo o papel do senador Antonio Carlos Magalhães. Ele não pediu, não mandou, não participou nem sequer soube da aventura noturna de que resultou a lista. Ninguém diz que ele tenha pedido, tenha mandado, tenha participado ou tenha sequer sabido.
Será que esses fatos singelamente narrados, de maneira fiel ao que existe dentro dos autos, autorizam a cassação do senador Antonio Carlos? A resposta é não.
Existe em Direito o princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade), segundo o qual deve haver simetria entre, de um lado as condutas e, de outro, as penas. No Regimento Interno do Senado, as penas vão de advertência até perda de mandato. Não é razoável que se pense na punição maior para uma conduta que, em última análise, teria constituído uma infração regimental. Se se banaliza a pena de cassação, aplicando-a neste caso, o que se faria, por exemplo, com outro parlamentar que fosse comprovadamente corrupto?
De outro lado, entre todos os dispositivos constitucionais e regimentais que poderiam se aplicar à questão, aquele mais adequado -o estipulado no art. 10, nº 111, do regimento- prevê perda de mandato temporária, não definitiva.
Assim, se se entender que o senador Antonio Carlos Magalhães cometeu alguma falta no episódio, a sua punição deveria ser, no limite, a suspensão do mandato, que é a segunda pena mais grave das estatuídas no regimento. Tão grave que nunca foi aplicada em toda a história do Senado.
Temos a certeza de que não se vai viver um ritual sacrificial de expiação, mas sim um julgamento justo, político mas também jurídico, como devem ser as decisões do Senado.



SIM- Conduta inaceitável
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Quando a juíza Sandra O'Connell, da Suprema Corte dos Estados Unidos, passou pelo Brasil, jantei com ela, seu marido e os advogados Ruy Fragoso e Paulo Bekin. Na ocasião, discutia-se o impeachment do presidente Clinton. Observei, então -se a questão chegasse ao tribunal que integrava-, como deveria ser complexa uma decisão sobre um ato indecoroso, mas sem nenhuma consequência para a nação, praticado pelo chefe do Executivo, principalmente pelo fato de, em contraposição, ter propiciado em seus anos de governo o maior desenvolvimento e progresso que o país já conseguira, em toda a sua história.
Respondeu-me a ilustre magistrada dizendo: "Professor Martins, eu votarei pelo impeachment, pois um presidente dos Estados Unidos não pode mentir para seu povo".
O episódio da quebra de sigilo da votação no Senado -sem nenhuma consequência prática, visto que o conhecimento ou não de como votaram os senadores, no processo de cassação do sr. Luiz Estevão, não modificou o resultado final apurado-, a meu ver, mereceria a mesma consideração daquela suprema julgadora americana, pois mentir para a sociedade brasileira é fato por demais grave para não ser punido.
É certo que o senador Antonio Carlos Magalhães não violou o painel da votação, tendo tido apenas conhecimento do que ocorrera. Não disse, todavia, a verdade sobre o fato e, por isso, em face da Constituição brasileira, faltou ao decoro parlamentar.
Não sou daqueles que vêem no senador um mau parlamentar. Creio que, na história recente do Brasil, teve relevante atuação. Considero, inclusive, que foi um bom governador da Bahia, assim como legislador atuante e corajoso, sobre ter exercido, com competência, as funções ministeriais no governo do presidente Sarney.
O Brasil deve ao senador muito mais do que a muitos dos que querem sua punição -alguns deles cortejadores de ditaduras sanguinárias ou cidadãos sem projetos nacionais, que fazem, todavia, da crítica contundente sua única arma para permanecer, permanentemente, na mídia. Não partilho desse tipo de indigência cívica, política e cultural. Entendo, porém, necessária a punição do senador Antonio Carlos Magalhães, simplesmente porque, no alto cargo que ocupa, não poderia ter mentido para a nação.
Pessoalmente, desejaria que ele praticasse um gesto de grandeza -e já assim agiu muitas vezes, no passado-, renunciando a seu mandato e conservando seus direitos eleitorais. Seria o reconhecimento de que errou e que está se punindo pelo erro.
Conservaria, todavia, seus direitos políticos e poderia concorrer às próximas eleições, cabendo exclusivamente aos eleitores julgá-lo, então, com o que poderia ou não ser perdoado da falha cometida, à luz de seu passado de serviço à nação.
Mais do que isso, sua renúncia eliminaria o traumático processo de cassação, permitindo que o Congresso voltasse a se dedicar à busca de soluções para questões relevantes, no momento doloroso por que passa o país, como, por exemplo, a crise energética, que certamente não é a única.

A versão e a lógica - Miguel Reale Júnior, 06/05/01- Folha de São Paulo

A versão e a lógica
MIGUEL REALE JÚNIOR


Diante das contradições existentes no "affair" violação do painel eletrônico do Senado, mantidas pela acareação, é necessário recorrer à lógica e ao bom senso para tentar alcançar, a partir de indícios, a verdade dos fatos.
Os indícios são elementos conhecidos da realidade, a partir dos quais, em trabalho indutivo-dedutivo e segundo os dados da lógica, alcança-se a descoberta de fato não conhecido diretamente.
Constituem, portanto, os indícios, dados de fato, certos quanto à sua existência, que, coordenados logicamente, segundo as categorias da inteligência humana, dada sua qualidade e quantidade, apontam, de forma unívoca, a realidade ignorada. Os fatos incontroversos e incontestados, tomados como base para raciocínios, conspiram, porém, contra a versão apresentada pelos senadores Arruda e Antonio Carlos Magalhães.
Um dado fundamental, a partir do qual se devem estabelecer deduções com base na lógica e no bom senso, tido, portanto, como um indício, pois certo e incontestado pelas partes envolvidas, consiste na mobilização à noite de funcionários do Prodasen e até mesmo no chamamento de técnico alheio aos quadros do órgão para viabilizar a quebra posterior do sigilo. Outro dado de relevo está no extremo cuidado tomado pela diretora do Prodasen de, ao ter nas mãos a lista da votação, não a ler e imediatamente colocá-la no envelope pardo, remetido ao senador Arruda.
Essa tarefa perigosa de preparar a violação do sigilo, somada à tensão de ter em suas mãos papel altamente comprometedor do cumprimento dos deveres funcionais, sabendo estar praticando grave falta disciplinar, em afronta à norma fundamental do sigilo do voto dos senadores em matéria de cassação de um de seus pares, tudo teria se dado, segundo os senadores Arruda e Antonio Carlos, por iniciativa exclusiva da diretora, como reafirmaram na acareação.
Teria, então, a diretora do Prodasen, na versão dos senadores, tentado mostrar boa vontade prestando um serviço, de alto risco, que não lhe fora solicitado nem suscitado como desejado.
Ora, será que esses fatos conhecidos permitem que se chegue, pela lógica, à conclusão de que não houve nenhuma determinação dos senadores, em especial do presidente da instituição, para que fosse preparada a operação de violação e que esta se realizasse, com o envio da lista para seu conhecimento?
Se se admitir que não houve solicitação dos senadores, como reiteram veementemente, é forçoso concluir que a conduta ilícita da diretora do Prodasen foi gratuita, nascida de seu ímpeto pessoal como dedicada funcionária, que não teve pudor de envolver vários técnicos para arriscar a possibilidade de satisfazer os senadores que indagaram se o sistema não poderia ser violado.
Esta gratuidade na prática do ilícito, no estilo do personagem de André Gide, obriga a que se conclua que, em vez de responder à indagação, a diretora teria resolvido, especialmente com relação à cassação de Luiz Estevão, realizar um teste e comprovar a insegurança do sistema. E mais, para deixar o teste materialmente concretizado, a diretora do Prodasen, Regina Borges, imprime a lista de votação e, sem responder à indagação por qualquer forma usual de comunicação, prefere responder com o fato bruto consumado: envia a lista da votação de cassação de Luiz Estevão.
Assim, o dado conhecido só conduz à revelação lógica da inexistência de ordem de violação por parte dos senadores se se acolher a inverossímil tese da gratuidade da prática ilícita nos moldes acima apontados. Só uma irresponsabilidade sem limites da diretora do Prodasen explica a explicação dos senadores.
Essa gratuidade só se justifica se a dra. Regina for irresponsável. Mas foge à lógica que a diretora do Prodasen seja tida por irresponsável e ao mesmo tempo o senador Antonio Carlos finalize sua participação na acareação reproduzindo palavras dela elogiosas e de grande respeito a ele. E este juízo de valor da dra. Regina só é válido se for ela responsável, o que faz cair por terra a versão fantástica apresentada pelos senadores.
Há, contudo, outros dados que não se casam com a pretendida atribuição de exclusiva responsabilidade da diretora pela violação. O primeiro dado diz respeito ao fato de o senador Arruda, "surpreendido" com a lista que recebera da diretora do Prodasen, lista que nem sequer insinuara desejar, ter imediatamente procurado o presidente do Senado para lhe mostrar o corpo de delito, que passou a ser detidamente analisado.
Ora, se havia surpresa quanto à lista, o lógico seria o senador Arruda procurar, sim, o presidente do Senado, mas para denunciar a ocorrência de fato grave, a devassa do registro de votação, e não para tecerem juntos comentários, lendo a lista que deveriam ter se omitido de ler, em respeito ao sigilo, cuja violação deveria ficar restrita à irresponsável diretora. Dessa forma, não se tornariam, como se tornaram, também eles autores da violação. Se confessadamente leram e tomaram conhecimento do conteúdo da devassa, saber o quadro de votação era o verdadeiro objetivo de ambos.
Outro fato relevante relaciona-se ao comportamento posterior do senador Antonio Carlos Magalhães, ao ir ao Ministério Público Federal e em conversa com os procuradores demonstrar poder por conhecer a lista de votação na cassação de Luiz Estevão, revelando até qual teria sido o voto de uma senadora.
Essa atitude é incompatível com a reação de destruir a lista por razões de Estado, que o levaram, também, a não tomar medidas repressivas à grave infração praticada. A preocupação, por outro lado, com a imagem da instituição não se compadece com a ausência de medida preventiva impeditiva de novas invasões do painel; medidas que poderiam ser tomadas sem alarde e conhecimento público, para garantir, dessa forma, que não viessem a ocorrer outros fatos similares. A circunstância do telefonema à diretora do Prodasen contraria a indignação que, por razões de Estado, deveria assomar à cabeça de um presidente do Senado diante da violação do sigilo dos votos de seus pares.
Por fim, admitida a hipótese de não ter participado como mandante ou instigador da violação do painel, é forçoso concluir que apenas o interesse próprio -a mantença do resultado favorável à cassação- e não o interesse superior da instituição torna compreensível a completa omissão em face do ocorrido. As versões apresentadas na acareação pelos senadores apenas reforçaram o que já era claro após seus depoimentos na Comissão de Ética do Senado, isto é, que suas "explicações", de forma irremediável, se confrontam com a lógica.