Crônicas do "Da C.I.A"

Tuesday, October 07, 2008

"Meu Brasil português", João Pereira Coutinho

Coluna de hoje, 07/10/2008

Meu Brasil português

Estou a escrever novela sobre os brasileiros em solo luso; intitula-se "Felipão é nosso irmão"

MINHA VONTADE ERA MATAR Miguel Falabella. Não, não houve plágio. Apenas uma coincidência cósmica que me arruinou um projeto televisivo. Leio na imprensa portuguesa que Falabella escreveu telenovela para a Globo onde existe família de portugas. "Negócio da China", eis o título, e na novela existe Belarmino, português com bigode, dono de uma padaria, casado com Carminda, que grita o dia todo. A completar o quadro, existem os filhos Celeste e Tozé e ainda uma aldeã vinda do interior de Portugal, que veste preto da cabeça aos pés (e usa bigode).
Desconheço se Falabella, como gênio criativo que é, não incluiu outros clichês divertidos sobre os meus compatriotas.
Pessoalmente, sugiro a Falabella uma empregada doméstica, a alentejana Maria das Dores, uma fadista nas horas vagas que gosta de imitar Amália Rodrigues durante a faxina.
Gastronomicamente, o prato da família seria bacalhau: salada de bacalhau, purê de bacalhau e ainda sorvete de bacalhau. E um dos filhos do casal lusitano (por exemplo, Celeste) começa a preocupar a família no dia em que revela que Nossa Senhora de Fátima costuma aparecer-lhe aos pés da cama, pedindo-lhe que conserve a virgindade até o dia do casamento. Pormenor importante: mesmo Nossa Senhora de Fátima usa bigode, mas um bigode dourado, celestial, que irradia conforto e luz.
Tozé, o rapaz, tem um único sonho: estudar direito em Coimbra e ser "doutor", como seu herói Salazar.
Dizia que minha vontade era matar Miguel Falabella. A razão é simples e urgente: inspirado pelas observações hilárias e autoflagelantes do meu amigo Bruno Garschagen, um jornalista brasileiro que vive em Lisboa, também eu estou a escrever novela sobre os brasileiros em solo luso. Intitula-se "Felipão é nosso irmão" e pretende ser um retrato fiel dos brazucas, seus hábitos e suas vivências, em Portugal. A história tem como figuras centrais Ladislau e Rosicleide, jovem casal que cruzou o Atlântico em busca de vida melhor. Mas é um erro pensar que Ladislau e Rosicleide deixaram o Brasil para trás em busca de novas experiências ou conhecimentos; na verdade, eles arrastaram o Brasil com eles e, mesmo em Lisboa, o casal acredita genuinamente que continua a viver nos subúrbios do Rio.
Ladislau gosta de vestir verde e amarelo todo o dia, como se fosse uma bandeira humana em perpétua declaração de amor ao Brasil. A excentricidade fez com que os vizinhos portugueses o batizassem com o apelido de "Bandeirinha"; outros, de "Carmen Miranda". Mas Ladislau não se importa e, todos os sábados, quando não trabalha na construção civil, ele acende uma vela por Nossa Senhora do Caravaggio, outra por Luiz Felipe Scolari e depois decide acordar o bairro inteiro com os grandes temas da música sertaneja.
Quando a polícia aparece em cena, pedindo respeito pelos vizinhos, Ladislau insulta a intolerância dos portugueses e a forma como Portugal trata os "irmãos" brasileiros. "É só preconceito!", grita Ladislau, que considera seu direito bombardear seus vizinhos com potência sonora digna de Chernobyl.
A fúria de Ladislau só é aplacada quando Rosicleide prepara dez quilos de feijão para o almoço: salada de feijão, purê de feijão e ainda sorvete de feijão. Ladislau come tudo e, no final, levanta-se, coloca a mão sobre o peito e canta: "Deitado eternamente em berço esplêndido/ Ao som do mar e à luz do céu profundo...". Adormece de seguida, roncando a tarde inteira. Os anos passam. Ladislau e Rosicleide vão perdendo as ilusões. Portugal é país caro; o regresso ao Brasil é uma impossibilidade econômica; e com o nascimento de duas crianças (Zézé e Ayrton, ambos de pais diferentes), Ladislau tem idéia luminosa: importar a família brasileira para Portugal. Dito e feito. A novela termina com os familiares de Ladislau e Rosicleide dormindo nas gavetas da sala e Ladislau, de calção e chinelo, fazendo churrasco na rua ao som de pagode. Os vizinhos portugueses já não protestam; fugiram do bairro nos últimos anos.
E agora? Como defender a originalidade do meu projeto? Eu só vejo uma solução: cruzar a minha história com a história de Falabella. Por cada cena de portugueses no Rio, eu daria a imagem inspiradora dos brasileiros em Lisboa. E, quem sabe, talvez fosse possível casar a Celeste de Falabella com o meu Ayrton, desde que Ayrton não abusasse no feijão.

2 Comments:

  • muito bom este JP Coutinho, obrigado por colocar aqui o artigo!

    Por Anonymous Anonymous, às 7/10/08 07:56  

  • Caraca!!! Chorei de rir com o bigode celestial de Nossa Senhora de Fátima! Morra de inveja, Falabella!

    Por Blogger Blogildo, às 12/10/08 17:05  

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